sábado, 19 de janeiro de 2013

Pequenos génios, viagem a outro mundo

Porta aberta. Entro pela casa a dentro. Era esperado e aguardado, mas não com pompa e circunstância e sim com um inocente desprezo, de quem estava atarefado e não me esperava tão cedo. Lembrei-me de um bonito dito, que li num livro e vi num filme, e disse-o, com um sorriso estampado no rosto e ar bonacheirão: Eu nunca chego adiantado, nem atrasado. Chego precisamente quando devo chegar.
O grilo cantou. Ouvia sons de gente a correr de um lado para o outro, de quem limpava, de quem trabalhava, mas não via ninguém. 
De repente, surge um pequeno ser, um rapaz novo. Reconheci-o de fotografias. Irmão de uma amiga minha. Um pouco gordo.
Olá, disse eu, cordial e bem educado, sou o Duarte, tu é que és o famoso...
Fui rapidamente interrompido. O rapaz levantou a mão, enquanto bebia de um grande frasco, leite com chocolate. Numa resposta cuspida e que quase o engasgou, disse: sou.
Momento de silêncio constrangedor. O grilo cantou de novo. Olhei em volta. Pensei em começar conversa, mas não conhecia o rapaz de lado nenhum e tinha um certo ar inquietante, de quem tudo observa e tudo ouve. Observei. Casa bonita, pequena mas acolhedora. Moveis feitos pelo pai, que estava a trabalhar.
O rapaz virou-me as costas e arrumou tudo o que tinha arrumar na cozinha. Olhou para mim. Por momentos pensei que me fosse matar. Avançou até a um pequeno sofá e sentou-se a olhar para mim, dono de uma seriedade sem nome. O silêncio permanecia, mas podia jurar que ouvia o bater do meu coração. Depois apercebi-me que não, e que era o rapaz que batia com um martelo numa pequena mesa. Estava a gozar comigo. Bufei, pois não me ocorria nada para a dizer. Finalmente, o rapaz disse:
- O teu nome é Duarte?
- Sim, sou...
- Tens cara de Zé. Podias-te chamar José. Eu tinha um amigo que se chamava José, mas depois mudou de nome para António.
- Porquê?
- Não interessa, queres ver a minha colecção de moedas? Tenho imensas. Escudos, francesas, espanholas.
Fiquei calado.
- Então? não sabes responder ou falar? - insistiu o rapaz - tenho montes de colecções, queres ver?
Nesse preciso momento, numa aparição de certa forma triunfal e autoritária, entra porta a dentro uma rapariga loira, com um ar à primeira vista angelical, mas mortífero e de que fazia o que queria, como queria, quando queria. Mas a verdade é que eu ainda estava meio intimidado com o rapaz e com as suas perguntas, que nem dei muita atenção à entrada da moça.
Decidi finalmente que o momento de estar calado tinha chegado ao fim, e respondi:
- Sim posso ver, também faço colecções.
Dei por mim e estava noutro mundo. Colecções de pedras e de conchas, de carros, de moedas, de caricas, de tudo. Tudo era importante e nada devia de ir para o lixo. Armas de cartão, óculos de sol mais velhos que o tempo, atlas do mundo e se fosse possível do universo. Este era um rapaz que tinha que saber e ter tudo o que lhe interessava. Dinâmico, rápido e incansável.
A rapariga seguiu-nos e juntou-se à conversa e à demonstração de colecções, interrompendo várias vezes o rapaz no seu discurso, dando às vezes a parecer que sabia mais sobre as colecções que o próprio dono.
Não me perguntem como, mas vi-me arrastado para um mundo infantil. Fui neto, fui avô, fui cadáver, joguei às escondidas, à apanhada, levei tareia, fiz queixinhas à minha amiga que entretanto se juntou à festa, preguei sermões sobre não ser violento que ninguém prestou atenção, fiz uma pausa do mundo infantil e fui ajudante de carpinteiro por vinte minutos (algo que não estrebuchei  visto que o carpinteiro era o patrão da casa), regressei ao mundo infantil e ensinei passos de dança - mal ensinados, mas foram simpáticos e fingiram de mim um profissional - nadei num rio, respirei calma, tranquilidade e paz e acabei o dia perdido num bar poético cheio de cacarecos de outras eras a beber sangria, enquanto conversava sobre amores perdidos e paixões distantes.

Digo como disse no dia em que parti: já morro de saudades da Ribeira Branca

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