terça-feira, 15 de outubro de 2013

Moribunda, a casa

E tudo o tempo levou. Infame e maldito, sem medo e sem pressas, levou consigo o que quis, quem quis, como e quando lhe apeteceu. Foram-se as noites e dias de natal, em que a mesa onde cabiam dez servia quarenta ou cinquenta, mais vizinhos. Em que as árvores de natal eram pinheiros mal cortados e roubados da terra do primo à última hora e o anfitrião da casa, o pai, era pior que os mais novos e roubava os relógios para antecipar a meia-noite, só para poder dar e receber as prendas. Prendas essas, que por falta de dinheiro, limitavam-se a cartas e desenhos, a pedras pintadas, a bonecos de palha, trapos e caixas enormes sem nada lá dentro, no fundo, pequeno e adorável lixo, mas sempre muito bem embrulhado, porque o natal naquela casa era os embrulhos e os enfeites.

O pai natal de vermelho era lhes um estranho, pois não havia tanta comercialização do natal, e a filha mais velha quando ouvia sons no sótão durante a noite natalícia, que provavelmente eram ratos muito metidos na sua pacata e complicada vida, julgava que era o menino Jesus a descer pela chaminé com as prendas. E os enfeites eram algo de outro mundo, muito improvisados e um pouco aldrabados, de tons vermelhos e dourados. E as fitas, essas eram em farta e de toda a espécie, coladas ao tecto, coladas à lareia, nas cadeiras e nos móveis, eram tantas e de tantos feitios que mais parecia Carnaval do que Natal.

 Foram-se os dias de Páscoa, em que vinha o padre com Jesus na cruz para se beijar, e que ninguém podia comer carne. Mas isto era tudo coisas da avó, a religiosa da casa. Os outros esperavam que ela fosse dormir, que chegasse a meia-noite e que acabasse o jejum de carne para se ir matar o porco e comer umas boas febras pela calada e às escondidas.

Foram-se também as grandes festas de aniversário, em que nunca se sabia bem quem era o aniversariante no meio de tanta gente. As jantaradas e almoçaradas aos fins-de-semana. A boa disposição, as anedotas porcas e às vezes labregas, e as outras muito bem pensadas, as palhaçadas e disparates, as partidas em que todos alinhavam, as loucuras, as confusões, as discussões e os conflitos resolvidos com abraços e terminados com o perdão.

Foram-se os bisavôs. O avô. A avó. Os tios, os primos, os cunhados. O pai.
Para trás, ficou a casa.
A casa e os que não morreram. Uma casa onde viveu gente, descansou gente, morreu gente e fornicou gente. Palco de algumas tragédias mas inúmeras comédias. Agora é de todos e não é de ninguém. Está abandonada, sem dono, quase esquecida. Perderam-se as chaves e as portas estão arrombadas de tanta vez que foi saqueada. Todos a querem mas ninguém luta por ela. Ficou decadente, moribunda, já não há festas, não há alegria. Há o nada.

(do baú)

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

O Libertino Idiota

A altura chegou a meio do quinquagésimo ataque de pânico. Os comprimidos deixaram de fazer efeito. O álcool deixou de ser cura. A droga deixou de ser antídoto. Reencontrar o amor deixou de ser solução. Como era costume, vestia o fato e sentava-se na grande poltrona que se encontrava no fim da sala. Respirava fundo, batia o pé, olhava em redor, contava pausadamente até cinco, assobiava Mozart e tentava-se acalmar. O fato deixava-o estranhamente mais confortável. Á sua frente visionava uma vida de solidão imensa e de alegria fingida. Antes tinha a desculpa e o porto seguro da missão que decidira empenhar. Mas ele sabia que a missão estava terminada. O seu tempo tinha chegado. Levantou-se, abriu a janela e empoleirou-se. Esboçou um pequeno sorriso, sincero, entre lágrimas e perdido da doença. "Boa viagem" murmurou a si mesmo. Olhou em frente. Deixou-se de cair. E acordou. Esta curta história não podia começar nem acabar com um suicídio se se quer contar a mais pura das verdades. Se bem que, suicídio é sempre dramático e apelativo. Começa como todas estas histórias costumam começar. Bem. Ele saltava de um lado e para o outro. O seu histerismo e espécie estranha de bipolaridade eram já conhecidos e reconhecidos. Tal como a sua estranha necessidade de mentir para divertir. Também se podia dizer que era conhecida nos quatro cantos do mundo a sua faceta apaixonada, enamorada e feliz. A vida sorria-lhe e dava-lhe com fartura, mas por algum motivo cansou-se e deu uma reviravolta. Podemos realmente censura-la? Quem quer uma vida de fartura, se se pode ter uma vida de caos que é muito mais interessante e toca muito mais nos corações. Não interessa contar o que se passou apenas isto: entre desastres e desastres, a vida levou o nosso personagem principal para um hospital. Foi forçado a habitar esse estranho e supostamente esterilizado mundo durante dois dias. E entre contactos com outros pacientes, uns loucos outros só fingidos, teve a mais banal das epifanias. Beber. De regresso a casa instalou-se no sofá. Seguiu-se um regime louco. Dormia duas horas por dia, deprimia as restantes, disfarçando-as com exercício e bebida que o deixava moderadamente alegre e indubitavelmente estúpido. Um mês se seguiu a este ritmo, chegando ao ponto de ninguém perceber se estava ressacado ou mesmo bêbedo. Durante a noite, ia a festas, desenvolvia frases tristes e supostamente atiradiças que lhe reservavam as mais ingenuas ou as que se encontravam num estado semelhante ou pior ao dele. Foi ameaçado pela família e pelos amigos para cortar no álcool. Não podemos dizer que ele era alcoólico mas a situação estava a tornar-se decadente. Ele acenou e concordou, mas duas semanas depois voltou ao mesmo ritmo. Sucumbiu uma vez mais. Ele merecia censura. Tinha deixado de tentar seguir em frente e deliberadamente encontrava o caos. Sentia que precisava dele. Queria se sentir mal. Queria ser masoquista. Queria a dor psicológica. Queria ser um coitadinho. Afastou a família e afastou os amigos. Beber, beber, beber e beber. Hoje diz-se que anda ai perdido pela noite, sem ninguém, como um condenado por si próprio, à espera de encontrar aquilo que já encontrou, como merece, como um libertino simplesmente idiota.

domingo, 13 de outubro de 2013

O homem mais impaciente do mundo.

Falta-me algo. Qualquer coisa. Urgentemente. Não tenho bem a certeza do que é. Já tive, agora já não tenho. Quero e quero, mas não sei o que quero.

Eu poderia muito bem ser um projecto científico de alguém. Tanta instabilidade, confusão e ridicularização junta só pode ser inventada. Real? Internem-me então.

 Do oito ou oitenta. Estou bem. Cinco minutos depois. Ainda estou bem. Dez minutos depois. Preciso de uma arma, tenho que matar alguém. Culpar os outros é sempre mais fácil.

Estou cansado. De tentar tudo e só conseguir nada. Sou um desequilibrado. Não me consigo adaptar a isto da sociedade. Um retardado em relações sociais. Esforço-me mais do que devia para parecer normal. Todas as minhas tentativas de entrar em sintonia com meio mundo, de ser menos estranho do que sou, falham disparatadamente. Quanto menos estranho tento ser, mais estranho sou. E ridículo. Vivo noutra época, noutro mundo, noutra rotina. É solitário. É uma merda. Bem que eu podia ser considerado um projecto científico de alguém. Acabo por parecer inventado. Uma personagem secundária da sua própria vida. No final do dia, sozinho com o silêncio do meu mundo e com a barafunda da minha mente. Preciso de um pouco de juízo. Limites. Senão acabo morto numa sarjeta.

sábado, 12 de outubro de 2013

El Labirinto del Fauno

Sou uma pessoa que se rende facilmente a vícios. Principalmente no que toca a Música e Cinema. Não necessariamente por essa ordem. Lógico que falamos de vícios saudáveis. Aliás, mais ao menos saudáveis. Tudo o que roça a obsessão é doentio e eu chego a ser obsessivo.

Se eu gosto de um filme, vejo-o até à exaustão, até saber tudo o que há a saber sobre – como foi feito, com quem feito, quem teve a ideia, onde foi inspirado – e perco-me na desilusão por nunca conseguir saber tudo e por me ficar apenas no “sei mais ou menos”. Mas é mais saudável assim. Aconteceu com O Corcunda de Notre Dame, quando era criança. Aconteceu e acontece com a trilogia Senhor dos Anéis, da qual sou um devoto fã. Aconteceu com o The Big Fish, filme que vi seis vezes num só fim-de-semana. Aconteceu com Cloud Atlas que vi 23 vezes num só mês. E agora, está a acontecer com O Labirinto do Fauno.

 Esta minha obsessão com filmes tem uma explicação. Eu sou uma pessoa que vive ainda presa num mundo de autêntica imaginação. E os filmes são o meu escape do mundo real. E só vejo mais filmes do que leio livros por um simples facto: música. Às vezes acredito que eu respiro música. Sim, poético. Não consigo passar um dia sem ouvir música. Tal como não consigo passar um dia sem ver um filme. E um filme sem música não é nada. Um filme com boa música pode ser tudo. Estão interligados.

O Labirinto do Fauno junta o melhor de dois mundos. Um excelente e poderoso argumento, e uma estrondosa banda sonora. Aviso já, não levem a minha palavra muito a sério. É um acérrimo fã que está a falar, logo não fala no seu perfeito juízo. A sua opinião não deve ser levada em conta, e para quem não viu o filme, tente ver com a menor das expectativas.

E depois O Labirinto do Fauno serve-se também dos meus temas favoritos no que toca a Cinema. Fantástico, em quantidades moderadas. Guerra, de forma crua e fria. Imaginário infantil, de forma inocente e derradeira. São filmes como este que me fazem pensar duas vezes antes de me querer meter na indústria cinematográfica. Como li algures, “Se não gostar, digo que odeio. Se gostar, digo que odeio porque tenho inveja”.
Claramente, odeio este filme de morte. Odeio porque gostava de ter sido eu o génio por detrás do conceito. E embora não seja fã de Guillermo del Toro, este filme conquistou-me e transformou-se numa das minhas principais referências.

 Uma obra-prima e como muitos dizem: um filme obrigatório.

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Ódios de Meia-noite.

Aos maus da fita é sempre feita a tradicional pergunta: como é que consegues dormir à noite?
Se costuma haver resposta, de momento não me recordo. Talvez fosse algo como: da mesma forma como tu.
Seja como for, se forem sinceros, coisa que, por norma escrita e implementada há séculos, nenhum mau da fita o é, a resposta inquestionável seria: não consigo.

Tenho dificuldades em dormir.
Dificuldades em acordar.
Sou perseguido todas as noites pelo mesmo pensamento, a mesma lembrança. E essa lembrança não me permite viver com propósito. Permite-me viver aterrorizado. E às vezes nem no terror me permite viver.

A minha breve fuga é o trabalho, e não escondo que o trabalho é um saudável e gostoso sacrifício. O trabalho e o imaginário.
Condenada está, podre ficou, enferrujada é, gasta e fraca se sente, a minha alma.
Poeta de meia-noite, deprimido em dia parado, ingrato e infeliz por não conseguir aproveitar o que sabe que tem. Podemos dizer que se tornou mais uma necessidade do que um facto. Tornou-se imaginária, inventada e constante.

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