sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Um fado mal contado

Ele vivia num mundo à parte, noutra realidade, noutra dimensão. Era um louco, feliz, gingão, fala-barato, tagarela, chato, sem papas na língua, de pensamentos bizarros, ideias anormais e paranormais, dançava na rua, vivia na lua, muito senhor do seu umbigo, sempre de ar leviano e nada contido. Mas tudo o que é bom, não dura para sempre, e a sua vida deu meia volta, caiu no chão, bateu com a cabeça, foi esfaqueado nas costas, gritou de dor, riu-se de horror, fugiu com pavor e durante algum tempo, viveu sem esplendor. Surgiu escondido na forma de um sorriso, que sempre lhe passara despercebido. Suavemente e devagar, pela calada, insinuando-se primeiro, inchando-se depois, todo arrogante, pimpão e presunçoso. Era amor. Era ilusão. Enfeitiçante como a lua cheia mas tão terrível como um exército pronto para a mais sangrenta das batalhas. Os dias tornaram-se semanas, as semanas meses. A batida era forte e insuportável. O sofrimento era desgastante. E o sorriso, traiçoeiro mas acolhedor. No início, não percebeu. Não compreendeu. Era algo novo, estranho. Mas as passadas longas do tempo despertaram-no. O que para ele foi uma pena. Pensou, que fazer? Estava confuso. Pensou outra vez. Tinha a cabeça mil à hora. Mas finalmente parou. Olhou e aproximou-se, sorrateiramente. Como se um cavaleiro disfarçado. O amor entrou pela porta da frente e a sensatez abalou pela porta traseira. Calma mas irrequietamente, algum tempo demorou. Chegada altura, exibiu-se e não vacilou. Mas não conquistou. E da ilusão acordou. Contou e recontou a si mesmo que nada daria errado, que seria esse o seu fado, os dois felizes, lado a lado. Só não tinha era percebido, que não passava nada mais de que um fado mal contado. Ficou calado. Muito contido, deprimido, pelas trevas apoderado, tresmalhado do pensamento, demasiado baralhado. Chorou, chorou, tentou-se apagar mas deu um tiro ao lado. Ficou acamado, durante demasiado tempo para sequer ser mencionado. No fundo, quem sabe o que pode ter murmurado, a si mesmo e à escuridão, nas amargas vigílias nocturnas, quando de repente viu todo o significado da vida a desaparecer como que num sopro, a sua própria razão de existência a perder o sentido, o acto de respirar a tornar-se inútil. Tudo encolhia, tudo perecia, e sem dar por isso, as paredes do seu quarto começaram a fechar-se sobre si, como uma arca encerando uma fera adormecida. Tudo se tornou sombra, tudo perdeu vida. Acender a luz? Qual luz? Essa há muito que estava apagada. Mas por muito que tenha custado, e que muitas primaveras tenham passado, lá se apercebeu de que se torturava por nada. Foi despertado da sua amargura e aposentadoria por alguém ainda mais excêntrico que ele. Ela surgiu como a aurora, com uma boa nova. Radiante como os diferentes raios solares, suave, sorridente, calorosa, de olhos escuros como o breu, hipnotizantes, intoxicantes e apaixonantes. Veio galante, trazendo o cheiro de chocolate e o talento de tocar saxofone. De falas e gestos gentis, pura de interior e emanando felicidade, lá trouxe o rapaz, de volta à realidade. Demorou um pouco mas a paixão lá chegou. Agora vinha verdadeira, com novo ar e melhor dom. Viu-se a luz renascida, um novo sonho, uma melhor vida. Há gargalhadas no ar, o sol a vibrar, há novo sorriso, com gritos de cor. Vai-te embora desgraça, dá lugar ao amor.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

O Estrangeiro faz-se sedutor

Todos os dias cresce a vontade de fuga.

A vontade de fuga da cidade, do país, do mundo e por ventura, talvez, do universo.
Esta sociedade deprimente foi criticada e assobiada ao longo dos tempos, em poésia rude ou gentil, em prosa áspera e crua, em falas mansas e sofisticadas. De que vale mais uma?
A vontade.

Das pessoas, tudo é irritante. Os seus jeitos, as suas conversas, os seus hábitos, ou seus maldizeres, as suas insignificâncias, as suas manias de grandeza, as suas pseudo-intelectualidades, as suas hipocrisias constantes, os seus tiques rudes e parolos, os seus estrangeirismos inúteis, as suas batalhas mentais, as suas declarações de ódio desmesurado, as suas falsidades constantes e o seu ritual de lambe cus, as suas palavras interesseiras, o seu sentido de humor inapropriado, a sua generosidade oportuna e por fim, até a sua tentativa patética e fracassada de ter algo a que chamam de vida.

A emigração parece uma tentativa sedutora. O sair daqui, fugir desta pobre comunidade que se fecha em si mesma enquanto se julga o supra-sumo das comunidades, o fazer as malas, o dizer adeus, o entrar no avião, o partir técnico, a passagem da fronteira, o chegar ao outro lado, o sair em tom prático, o sorrir, o dizer olá e a esperança infindável de que a partida sonhada e idealizada à junção da sua chegada ambicionada não sejam um total desperdício de tempo, desperdício de vida e de que não se conclua que lá fora é igual a cá dentro.

Porque nesse momento nascerá a triste pergunta: será que também somos o que odiamos ver?

Talvez.
Mas preferimos não saber.

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